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Roupa velha

 

            Estavam sempre todos. Sempre todos. Os tios e tias, os primos e família que não conhecia. Estivesse frio, frio, húmido ou apenas frio. Melhor nunca, o Minho no começo do inverno é agreste, a água que sai das torneiras vinda da mina da quinta faz esquecer os dedos e estala os dentes. Os campos estão brancos, as estradas perigosas, o cume das montanhas recheados com neve.

         O avô à cabeceira, hirto, senhor de terras e habituado a ser obedecido. A avó, senhora de si, mulher de justiça na mão, com uma coragem inesgotável; há qualquer coisa na mulher minhota que nos mostra as raízes profundas dos grandes carvalhos, a inabalável fé, o pilar da família. Nunca foram dados a grandes afetos talvez por terem vivido épocas conturbadas – as revoluções antes do Estado Novo, as duas grandes guerras, a revolução espanhola, o 25 de Abril. Os seus valores eram claros. E amavam-se com a mesma intensidade de quando se conheceram.

Doce aroma da madeira queimada vinda da lareira. Não havia o pinheiro enfeitado, antes o presépio com a virgem, os valores não importados.

         Nem no Natal nós, os mais novos, nos sentávamos à mesa da sala. Sempre fora assim e sempre seria.

         - Só fazem barulho- resmungava o avô

o que era um alívio. Comíamos na cozinha antes dos criados da casa, lugar aquecido pelo forno a lenha onde a algazarra era permitida. O bacalhau que não gostava, as batatas e as couves da quinta.

          - Ó Maria, não quero isto! - queixava-me.

          - Vá, dou-lhe outra coisa, mas que o avô da menina não saiba se não ralha comigo.

          Candeeiros a petróleo com as suas sombras fantasmagóricas faziam-me medo, evitava os corredores sombrios. Esta era a família distante e longínqua dos meus acostumados dias diários. Eram a quebra e a diferença, gostava do Natal das terras minhotas onde o fumo das chaminés em vez de subir curvava e seguia paralelo ao chão.

         - É do frio

         dizia pacientemente o pai enquanto conduzia até à quinta. O frio, frio, que não me deixava ir brincar lá para fora e a quinta dos meus sonhos era confinada à sala onde a lareira aquecia.

          Os homens não iam à missa – antes conversavam à espera que esta acabasse. Nós ajoelhávamo-nos e dizíamos o “Pai-nosso” esperando a hora da saída. A avó permanecia sempre atenta e ralhava connosco se ficávamos impacientes. Era a noite do menino Jesus e devíamos comemorar o seu nascimento, dando graças pelo que tínhamos.

            A hora das prendas e a família reunida em torno da lareira. O candeeiro a gás ligado libertando um zumbido a que não estava habituada. Os avós davam um envelope com dinheiro, os pais, roupa. Os tios, um brinquedo. Eu gostava, sabia que mais tarde entregaria o dinheiro aos meus pais para outras necessidades, mas tinha sempre um brinquedo que fazia as minhas delícias. Depois, depois comia a última rabanada e estava pronta para me deitar.

“Anjo da guarda, minha doce companhia

guardai a minha alma de noite e de dia”

            A avó nunca se esquecia. Eu juntava as mãos e acreditava naquela presença silenciosa que estava sempre comigo.

            A escuridão da ausência de luz, os lençóis cheiravam a sabão azul-e-branco. As mantas pesadas para não ter frio. E fechava os olhos, fechava-os com força para adormecer embalada.

           O dia amanhecia cheio de uma esperança que não conseguia identificar. Espreitava pela janela para observar os pássaros felizes nos troncos das árvores, o cão que era o guarda da casa. Saía de casa com roupa quente e botas nos pés.

           - Maria, porque não vai ter com a família?

           - Não posso, menina. Os animais têm de comer, o campo precisa de ser amanhado. A terra não tem feriados.

           E não tinha. Na madrugada do dia de Natal levantava-se mais cedo, ia à missa, regressava para acender o fogão a lenha e depois ia alimentar as galinhas, coelhos, porcos e vacas. Foram tantas as vezes que escapei atrás dela - às escondidas, a neta do avô não podia sujar a roupa. Preferia o toque na pele macia dos coelhos ou sujar as mãos na preparação das couves para as galinhas. Que importavam as conversas da sala que não entendia? O nariz gelava e as orelhas tornavam-se vermelhas sangue. O tanque tinha uma camada fina de gelo que viera pela noite fria onde o anjo protetor me acompanhara.

           As oliveiras estavam carregadas, mesmo aquelas que trepávamos pelo verão nas férias da liberdade. Não o podia fazer pelo inverno, escorregadias cheias de musgo.

Ao almoço, roupa velha e peru recheado. Na mesa dos adultos, claro. Na nossa vinha um frango assado mais a nosso gosto. As sobremesas só eram provadas depois de terem vindo da mesa grande. Eram imensas, doces regionais que deliciavam toda a gente.  

          A tarde não podia prolongar-se muito pois ainda faltavam 400km para percorrer em estradas más. Pouco a pouco cada um saía, os tios e os primos. Os avós voltariam a ficar sozinhos.

De mãos coladas no vidro traseiro do carro, quando a hora de retomar a sul aparecia, deslizavam lágrimas na minha cara por mais uma vez ir-me embora.

          - Não chores, voltaremos a regressar.

           E daqueles dias sobravam recordações que guardava religiosamente.

           Mais velha continuei a regressar, a imutabilidade parecia tomar conta da paisagem, a Maria continuava a apaparicar-nos como se crianças fossemos. Passei a jantar na sala e a rir-me com os meus tios e primos. O avô mantinha o seu ar de sempre, a avó segura de si.

O espírito natalício continuava igual – a família ficava deliciada por rever-se, as crianças aguardam a hora das prendas do menino Jesus, os adultos punham e conversa em dia. Mas o país ia-se desenvolvendo e a eletricidade chegou, as sombras fantasmagóricas dos candeeiros a petróleo desapareceram, apenas permaneceu a lareira e o fogão a lenha. Deliciosos aromas invadiam a cozinha.

         Nessas alturas o meu anjo da guarda aparecia sempre – assim o sentia. A religiosidade da terra transpirava pelas paredes de pedra, as árvores aclamavam-na.

Mais uma vez regressámos a sul, mas deixei de chorar. Sabia que poderia regressar quando quisesse.

       Que não aconteceu.

       Pouco tempo depois da chegada da eletricidade o avô deve ter ficado cansado de tanto brilho e um dia partiu.

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